A banalização das mortes violentas parece não perturbar os brasileiros que se conformam em culpar o sistema judiciário e policial.

A hipocrisia de cada dia, principalmente daqueles que utilizam de forma profissional os espaços da mídia, governantes e demais poderes, insiste em apontar para os outros a responsabilidade pelo massacre diário que é vivenciado nesta Nação.

 

Crimes de toda ordem infectam nossa forma de viver. Principalmente aqueles praticados contra a vida, bem fundamental para qualquer ser humano. A banalização das mortes violentas parece não perturbar os brasileiros que culpam o sistema judiciário e policial como se possuíssem o poder de antever as estrepolias violentas que praticam criminosos passionais, eventuais ou profissionais.

 

A cultura do assassinado e da morte cruel é incentivada no Brasil pelo governo e bem aceito  pelos cidadãos que acreditam que violência se enfrenta com mais violência. No trânsito quando um motorista comete uma infração, pequena ou grande, o negócio é agredi-lo de forma violenta  como se estivéssemos seguros em nosso inexpugnável direito.  

 

Perdeu-se a cultura da educação. Curtir o respeito a sociedade e a cidadania é mostrar-se ingênuo, bobo ou, quem sabe, incompetente e burro. Temos que ser justiceiros com o dever de punir e condenar os outros, mas  perdoar nossos próprios pecados. Afinal, nos auto intitulamos "cidadãos do bem".

Nunca seremos um País de primeiro mundo enquanto raciocinarmos como primitivos. Olho por olho dente por dente. De nada adianta ter formação escolar e universitária enquanto continuarmos agindo como trogloditas.

 

A violência nossa de cada dia é culpa de cada um de nós. Quando mudarmos a forma de conviver em sociedade teremos políticos honestos, uma polícia eficiente e uma justiça recuperativa.

Máquinas de triturar braços e vidas
Transcrito da Revista Eletrônica Jus Navigandi

"Quase oitenta milhões de carros e motocicletas disputam os espaços públicos entre eles assim como entre eles e os pedestres e ciclistas. Quando mostramos para os estrangeiros o número de pessoas mortas no trânsito brasileiro - mais de um milhão de 1980 a 2013, 127 por dia, um óbito a cada 12 minutos – eles perguntam: faltam leis? Respondemos que não. Leis nós temos, razoavelmente boas tanto quanto as da Suíça. 
 
O problema é que aqui não temos os suíços para cumprirem tais normas de trânsito. Transformamos os veículos em máquinas de triturar braços (como no caso de David Santos Souza, cujo membro foi decepado por um motorista na Avenida Paulista, em São Paulo) e vidas. Continuamos engrossando nossas pilhas imensas de cadáveres antecipados. Por que tantos massacres? 
 
Boa parte deles faz parte da nossa guerra civil étnica e social, fundada na profunda ruptura social entre o Estado e os segmentos favelizados, ocupados por gente segregada, apartada (os inimigos). Aqui falamos da violência pública, violência levada a cabo pela maquinaria de guerra do Estado, formada pelo sistema policial-jurídico. Outra parte é fruto da guerra civil no trânsito: o carro foi transformado em arma de guerra (tão potente quanto uma arma de fogo) e outro (as outras pessoas) em inimigo.  
 
Na guerra, o objetivo é sempre destruir (triturar) o inimigo (ou pedaços do seu corpo). É isso que estamos fazendo, com razoável eficiência: 127 pessoas mortas diariamente no trânsito e cerca de 140 intencionalmente. Nossas máquinas de triturar vidas contam com uma produção tanatológica diária de uns 270 óbitos.  
 
O Estado Democrático de Direito (anunciado pela Constituição), a moral humanitária e o progresso coletivo (sobretudo o econômico) não passam de indicadores civilizatórios totalmente inócuos e artificiais em sociedades como a brasileira, marcada (em grande parte) pela brutalidade selvagem assim como pela absoluta ausência de formação ética (entendida como a arte de viver bem humanamente – como diz Savater). O desprezo pela vida humana (muitas vezes a própria e, com frequência, a dos outros) só encontra paralelo no descuido com a coisa pública. 
 
Nossas políticas públicas, em geral (de saúde, de educação, de segurança viária etc.), não passam de necro-políticas, fundadas nas racionalidades aberrantes da tanatologia. A sociedade brasileira e o funcionamento da nossa egoísta convivência (ressalvadas as exceções) não retratam uma nação integrada, caracterizada pela ética e pelo respeito ao outro. Aqui atropelamos as pessoas e jogamos seus braços nos córregos como dejetos repugnantes. Ausência absoluta não só de respeito às regras jurídicas, senão, sobretudo, de ética. A selvageria chega ao ponto de se ignorar que um braço pode ser reimplantado.  
 
O nível de ensino (e dos exemplos públicos) que damos para a grande maioria da população é deplorável. Nosso ensino público é uma falsidade incontestável. O Estado não é instrumento da aplicação igualitária da lei, muito menos o bem-feitor social que privilegia todos os segmentos. Vivemos de mentiras, assentadas sobre uma única verdade: a dos milhões de cadáveres antecipados, porque desde o início da nossa colonização não aprendemos a respeitar a vida humana (ao contrário, somos máquinas treinadas para triturá-las, intencional ou acidentalmente, nas ruas, nas casas, nas boates etc.)." 

GOMES, Luiz Flávio. Máquinas de triturar braços e vidas. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3698, 16 ago. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/24015>. Acesso em: 18 ago. 2013.