"O modo fácil de encarar o inferno em que vivemos das mortes violentas em profusão, sobretudo de jovens negros, opera concomitantemente com ardileza e sofisticação em várias direções: ora tornando invisíveis as mortes e regiões da cidade onde esses jovens negros tentam viver, seja pela absoluta imobilidade urbana, ausência de políticas sociais básicas e espaços seguros para a convivência comunitária, ora estigmatizando as vítimas como “elementos perigosos” viciados e vagabundos, ora banalizando e naturalizando as mortes, como se fossem parte de uma tragédia impossível de ser prevenida e evitada."



A JUVENILIZAÇÃO DOS HOMICÍDIOS: O INFERNO DOS VIVOS
Texto do advogado PEDRO MONTENEGRO, publicado na Gazeta de alagoas
 
 
“O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço”. Italo Calvino - As Cidades Invisíveis.



Estudos e pesquisas sobre a evolução sócio-demográfica da população de jovens compreendida entre 15 e 29 anos de idade no Brasil apontam que a morte destes jovens por homicídios vem crescendo ano após ano. Em Alagoas, segundo os dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade do Ministério da Saúde – SIM/MS, em 2010 morreram 2.086 pessoas vítimas de homicídio, destas vítimas 1.294 tinham entre 15 e 29 anos, o equivalente a 62% do total. 81% das vítimas eram negras. A capital Maceió concentrou quase a metade das vítimas de homicídio de todo o Estado de Alagoas com 1.027 vítimas de homicídio, registrando a espantosa taxa de 131 vítimas a cada 100 mil pessoas, sendo que 712 dessas vítimas eram jovens entre 15 e 29 anos, perfazendo o incrível percentual de 69% do total de homicídios.

A magnitude ingente da juvenilização dos homicídios em Alagoas, e especialmente em Maceió, sugere que estamos vivendo no “inferno dos vivos”, a que se referiu o genial Italo Calvino em um dos seus escritos mais conhecidos: As cidades invisíveis, de 1972, cujo trecho final foi aqui epigrafado.

As similitudes entre a realidade intemperante da violência contra os jovens e as linhas magistralmente escritas da destacada obra da literatura pós-moderna europeia não se resumem à existência de um autêntico “inferno dos vivos” nas terras outrora habitadas pelos Caetés. A maneira fácil como a maioria das pessoas aceitam este inferno que é o genocídio da nossa juventude negra e tornam-se parte dele até deixar de percebê-lo é inimaginável. A invisibilidade dos territórios da cidade de Maceió maculados pelo sangue abundantemente derramado dos nossos jovens é latente.

Bairros como Tabuleiro do Martins, Benedito Bentes, Jacintinho, Vergel do Lago, Cidade Universitária e Clima Bom apresentam índices de homicídios por 100 mil habitantes em muito superiores a países onde ocorreram conflitos bélicos, a exemplo do Iraque e do Afeganistão.

O modo fácil de encarar o inferno em que vivemos das mortes violentas em profusão, sobretudo de jovens negros, opera concomitantemente com ardileza e sofisticação em várias direções: ora tornando invisíveis as mortes e regiões da cidade onde esses jovens negros tentam viver, seja pela absoluta imobilidade urbana, ausência de políticas sociais básicas e espaços seguros para a convivência comunitária, ora estigmatizando as vítimas como “elementos perigosos” viciados e vagabundos, ora banalizando e naturalizando as mortes, como se fossem parte de uma tragédia impossível de ser prevenida e evitada.

Nesse sentido, o tema do crack vem a calhar para compor um discurso que não leva a nada porque é oco e porque oculta atrás de retórica quase mágica as razões complexas e multidimensionais da dantesca violência homicida contra os jovens negros.

É o “recurso curinga”, expressão cara ao renomado sociólogo francês Loïc Wacquant. O “recurso curinga” tem o condão de simplificar, reduzir e mistificar questões complexas, evitando assim as análises científicas transdisciplinares absolutamente indispensáveis à compreensão de fenômenos multicausais como a violência.

Serve o recurso curinga como mecanismo falseador, ocultando o maciço desinvestimento social causado pela diminuição da presença estatal na Maceió invisível, responsável direto pela aceleração da degradação da infraestrutura institucional na cidade apartada e pela facilitação da propagação da violência endêmica. Foi esse contexto que ofereceu o espaço, a ambiência e o impulso para o desabrochar de uma exuberante economia informal dominada pelo comércio da droga.

As elites, com os seus poderosos aparelhos ideológicos, querem fazer crer que a cartografia da violência de Maceió é autossustentável, ou seja, é responsabilidade das próprias vítimas jovens e específica das regiões “perigosas” da cidade, quando de fato a violência, assim como o lucrativo comércio ilegal de drogas, é sobredeterminado e sustentado externamente pelo intenso e sinistro processo de descivilização, despacificação, desertificação, desdiferenciação, erosão do espaço público urbano e do desmonte do Estado de semibem-estar social na cidade de Maceió."