"O modo fácil de encarar o inferno em que vivemos das mortes violentas em profusão, sobretudo de jovens negros, opera concomitantemente com ardileza e sofisticação em várias direções: ora tornando invisíveis as mortes e regiões da cidade onde esses jovens negros tentam viver, seja pela absoluta imobilidade urbana, ausência de políticas sociais básicas e espaços seguros para a convivência comunitária, ora estigmatizando as vítimas como “elementos perigosos” viciados e vagabundos, ora banalizando e naturalizando as mortes, como se fossem parte de uma tragédia impossível de ser prevenida e evitada."
A JUVENILIZAÇÃO DOS HOMICÍDIOS: O INFERNO DOS VIVOS
Texto do advogado PEDRO MONTENEGRO, publicado na Gazeta de alagoas
As similitudes entre a realidade intemperante da violência contra os jovens e as linhas magistralmente escritas da destacada obra da literatura pós-moderna europeia não se resumem à existência de um autêntico “inferno dos vivos” nas terras outrora habitadas pelos Caetés. A maneira fácil como a maioria das pessoas aceitam este inferno que é o genocídio da nossa juventude negra e tornam-se parte dele até deixar de percebê-lo é inimaginável. A invisibilidade dos territórios da cidade de Maceió maculados pelo sangue abundantemente derramado dos nossos jovens é latente.
Bairros como Tabuleiro do Martins, Benedito Bentes, Jacintinho, Vergel do Lago, Cidade Universitária e Clima Bom apresentam índices de homicídios por 100 mil habitantes em muito superiores a países onde ocorreram conflitos bélicos, a exemplo do Iraque e do Afeganistão.
O modo fácil de encarar o inferno em que vivemos das mortes violentas em profusão, sobretudo de jovens negros, opera concomitantemente com ardileza e sofisticação em várias direções: ora tornando invisíveis as mortes e regiões da cidade onde esses jovens negros tentam viver, seja pela absoluta imobilidade urbana, ausência de políticas sociais básicas e espaços seguros para a convivência comunitária, ora estigmatizando as vítimas como “elementos perigosos” viciados e vagabundos, ora banalizando e naturalizando as mortes, como se fossem parte de uma tragédia impossível de ser prevenida e evitada.
Nesse sentido, o tema do crack vem a calhar para compor um discurso que não leva a nada porque é oco e porque oculta atrás de retórica quase mágica as razões complexas e multidimensionais da dantesca violência homicida contra os jovens negros.
É o “recurso curinga”, expressão cara ao renomado sociólogo francês Loïc Wacquant. O “recurso curinga” tem o condão de simplificar, reduzir e mistificar questões complexas, evitando assim as análises científicas transdisciplinares absolutamente indispensáveis à compreensão de fenômenos multicausais como a violência.
As elites, com os seus poderosos aparelhos ideológicos, querem fazer crer que a cartografia da violência de Maceió é autossustentável, ou seja, é responsabilidade das próprias vítimas jovens e específica das regiões “perigosas” da cidade, quando de fato a violência, assim como o lucrativo comércio ilegal de drogas, é sobredeterminado e sustentado externamente pelo intenso e sinistro processo de descivilização, despacificação, desertificação, desdiferenciação, erosão do espaço público urbano e do desmonte do Estado de semibem-estar social na cidade de Maceió."