Por que tanta insegurança

Paulo Sette Câmara - Belém(PA) - 01/04/2007
Não há meio termo quando se trata de segurança pública: ou se tem ou não. A realidade demonstra que a atividade de defesa social a cargo do Estado (União, Estados e Municípios) é ineficaz e a qualidade dos serviços prestados por suas instituições deixa a desejar. Há um consenso de que algo urgente precisa ser feito, mas ninguém se entende quanto ao que fazer. A mudança que se faz necessária passa por alteração constitucional, pela revisão de privilégios, pela quebra de tabus e enfrentamento de algumas corporações que se julgam acima da sociedade. As instituições são importantes e devem ser preservadas, mas a paz social é essencial. Nesse caso, diz o bom senso, o primeiro passo é identificar por que chegamos a esse ponto. A Polícia, o Ministério Público, a Justiça e os Municípios não são instituições "imexíveis" e é responsabilidade dos governantes adequá-las às necessidades atuais ou reformular a prestação dos serviços que propiciam a paz social. Dificuldades são inúmeras, mas a insegurança pública impõe que cada qual enfrente seus desafios. Pela importância do tema e profundidade das medidas requeridas, seria interessante um esforço conjunto dos companheiros e da própria sociedade para identificar os nós a serem desatados. A origem da insegurança pública está na incapacidade do Estado de conter e punir os criminosos e executar as políticas públicas adequadas. Seminários, teses e artigos sobre o assunto, com raras exceções, recomendam ações pontuais voltadas para a polícia. Todavia, o desafio é mais complexo e não será vencido com ações isoladas; ao contrário, requer esforço conjugado das esferas federal, estadual e, especialmente, municipal. Exemplo dessa falta de interação são os garotos que ontem dormiam nas ruas e cheiravam cola, que depois se transformaram em "trombadinhas" para adquirir o alimento e o crack e, hoje, assaltam, ferem e matam impiedosamente. Só uma dura repressão pode impor limite à revolta agressiva e cruenta desses jovens, mas recuperá-los e educá-los para a socialização é tarefa que exige paciência, dedicação e amor - sentimentos de que o Estado não dispõe. Devolvê-los às ruas é realimentar a violência contra a população e mantê-los enjaulados é cometer violência contra quem não teve oportunidade de uma vida útil. O que fazer? Chegamos a esse ponto porque não se estudava segurança pública no Brasil e esse descaso deu margem para que a atividade se reduzisse somente ao serviço policial. Pior: permitiu o surgimento de tabus, conceitos falsos ou distorcidos, além de situações que as corporações desejam "imutáveis". O processo de deterioração desses serviços pode ser acompanhado na história recente das instituições. Até meados do século passado, a polícia no Brasil era basicamente municipal. Os delegados, normalmente escolhidos entre os cidadãos locais, eram nomeados pelos chefes de polícia dos estados por indicação política e contavam com soldados que a força pública colocava à sua disposição para atuarem como "gendarmes". A organização da polícia de carreira (Delegados, Investigadores, Escrivães, Guardas-Civis e Carcereiros), teve início nas capitais de alguns estados na década de quarenta e, aos poucos, foi ocupando as delegacias municipais. A extinção de seu braço fardado em 1967 -as Guardas Civis - deu início à confusão na prestação do serviço policial. A Polícia Civil só foi institucionalizada pela Constituição como prestadora dos serviços de polícia judiciária em 1988. A mesma Carta convalidou a decisão do regime militar que atribuíra às Polícias Militares {forças públicas - uma espécie de Guarda Nacional -cuja missão é proteger o território estadual, assegurar as decisões dos poderes constituídos e restaurar a ordem pública} a exclusividade de prover os serviços de policiamento ostensivo e, esdruxulamente, militarizou os corpos de bombeiros. As PMs fizeram parte da nossa história e desempenharam um importante papel na construção do Brasil. Entretanto, sua constitucionalização "engessou" o reordenamento e inviabilizou a adequação dos serviços policiais às necessidades da defesa social. A "policialização" da segurança está expressa no artigo 144: "A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:...". e nomeia as instituições policiais. Com esse adendo a Carta restringiu o campo de atuação da segurança pública ao serviço policial. E, até recentemente, as autoridades federais interpretaram "dever do Estado" como "dever dos estados", para eximir a União da co-responsabilidade pela paz social. Em rápidas pinceladas, essa é a história da polícia no Brasil até o fracionamento dos seus serviços essenciais. As Prefeituras detêm a responsabilidade objetiva pela segurança dos seus munícipes, o poder e os instrumentos disciplinadores das atividades que ensejam conflitos (circulação de pessoas e veículos; localização de estabelecimentos; limpeza, transportes, iluminação pública etc.). Cabe-lhes prover os meios para a proteção a vítimas e testemunhas ameaçadas; para atender o Estatuto da Criança e do Adolescente e amparar os loucos e mendigos que perambulam por suas ruas. Enfim, compete-lhes a maior parte das medidas pró-ativas de segurança pública, faltando apenas os instrumentos reativos, ou seja, o aparelho policial-judiciário-penal para enfeixar todo o processo. A violência do trânsito urbano é um bom exemplo. Cabe ao Município fiscalizar as infrações administrativas e à polícia estadual reprimir os delitos de trânsito. Atuações isoladas, enfoques diferentes e às vezes conflitantes, resultam em impunidade e no absurdo número de vítimas pessoais e materiais. A intranqüilidade coletiva é provocada por dois tipos de ocorrência: eventos distantes do cidadão comum que repercutem na mídia (grandes assaltos, chacinas, confrontos com bandidos, crime organizado etc.) e provocam o medo coletivo, embora com baixa incidência nos índices estatísticos; e os eventos que afetam diretamente a população: os assaltos, seqüestros-relâmpagos, arrastões, gangues, os conflitos, as balas perdidas, enfim, o caos que vivenciamos. As camadas mais ricas foram as primeiras a sofrerem a violência dos assaltos e seqüestros e adotaram medidas privadas de proteção. Logo os ataques chegaram à classe média e, agora, atingem a camada menos favorecida da população. A sociedade reage com freqüência e intensidade cada vez maiores, através de manifestações, passeatas, bloqueios de rua, depredações e linchamentos e, sem uma resposta eficaz, estamos a caminho de uma sublevação popular. Os conflitos e delitos comuns (homicídios, furtos, lesões etc.) ocorrem nas cidades, obedecendo características demográficas, culturais e geográficas distintas. Então, o planejamento e a execução das medidas pró-ativas e reativas deveriam atender às peculiaridades locais e dispor de um aparato de segurança compatível. Mas não é o que ocorre: as instituições estaduais planejam a distância e provêem o efetivo e os meios de acordo com os critérios e disponibilidades da corporação (ou do "político" da região), ambos dissociados da sociedade local. Já o crime organizado e as organizações criminosas que traficam armas e drogas, que controlam jogos, praticam grandes assaltos, seqüestros e demais crimes que exigem estrutura de apoio, só podem ser enfrentados por uma polícia especializada, de jurisdição estadual ou federal, que usa inteligência, recursos e meios adequados para identificá-los e prendê-los, com riscos mínimos para terceiros. Esse tipo de criminalidade é neutralizado com inteligência e ação conjunta da polícia e justiça, apoiadas pela administração municipal. Tais delitos diferem dos crimes comuns e sua repressão também. Ao mesclar as missões, a polícia e a sociedade perdem e os bandidos ganham. O que ocorre nos morros cariocas decorre do equivocado emprego de estratégia militar no combate a organizações criminosas estruturadas. O emprego de força militar exige um inimigo identificado, mas como identificar o criminoso que se confunde com a população? Essa tática militar ganha batalhas, mas não a guerra contra oponentes invisíveis. E, convenhamos, não estamos em guerra contra os cidadãos que ali residem! Essa situação é similar à que ocorre com o exército americano que em uma semana dominou o Iraque e, há quatro anos, com milhares de soldados e à custa de milhares de vidas, vem sendo derrotado por um inimigo que não consegue ver, enquanto a população civil paga o preço. O pressuposto é que cabe à polícia prender e à justiça julgar criminosos e a certeza de que a punição é o fator mais eficaz para inibir delitos. E com todas as deficiências da polícia, crimes têm sido desvendados e inquéritos encaminhados à Justiça numa proporção maior do que esta dá vazão. Se a apuração policial não satisfaz, o Ministério Público pode e deve exigir novas diligências. Entretanto, um expressivo número de procedimentos é arquivado, deixando impunes os acusados de delitos; muitos processos aguardam julgamento e prescrevem por decurso de prazo, deixando seus réus acintosamente afrontando a sociedade; o sistema prisional estadual está abarrotado de presos, provisórios e condenados, enquanto milhares de mandados de prisão aguardam cumprimento; não há vagas nos centros estaduais de recuperação dos jovens infratores; condenados de alta periculosidade têm sua pena reduzida, voltam para as ruas e reincidem no crime; o mesmo ocorre com os presos provisórios que excedem os prazos legais; e assim, a sociedade fica exposta, as vítimas culpam a polícia e a violência aumenta. Por outro lado, não temos instâncias privadas de conciliação e, raramente, os defensores e promotores de justiça (também estaduais) atuam na harmonização das desavenças familiares, dos conflitos de vizinhança e dos quase crimes. Estes casos sobrecarregam a polícia e se somam aos processos que a justiça estadual não dá vazão. Com a ausência do Estado, as desavenças acabam resolvidas pela lei do mais forte ou em linchamentos cada vez mais freqüentes. A impunidade é a matriz do caos da segurança pública no Brasil e enquanto esta não for recolocada num nível aceitável, nenhum projeto para a redução das desigualdades sociais terá êxito. O aparelho policial participa desse processo, mas não é determinante. As operações da Polícia Federal, desmontando quadrilhas, prendendo (sem tiroteios) figurões, políticos e autoridades, acenderam a esperança de mudanças, mas os presos já estão soltos e os procedimentos emperrados. A conclusão óbvia é que o sistema de defesa social do Estado está falido. Esta síntese é para demonstrar que a saída para o caos da segurança pública é complexa, mas que, identificando alguns nós, desatá-los tona-se mais factível!

Retirado do Site do FBSP